terça-feira, 14 de julho de 2015

travessados estamos – travessemos

travessados estamos nessa travessia, não? demais. por demais, mas – que bom!
não digo que não dói. o sertão também dói, o senhor tolere, respire, guente.
dói estar sem poder abraçar o primeiro que passar pela minha frente e ser lindamente bem recebido.
dói não ter um chãozim de terra seca pra sentar e prosear com alguém – descanso de verdade é este, aprendemos – prosear sentadinho em qualquer canto, uma sombrinha e mais nada além.
dói lembrar de sorrisos, olhares fundos, em que não houve gesto esticado ou palavra aberta suficiente pra dizer do quão belo achei.
dói estar longe de buriti.
dói estar longe de vereda.
longe, onde tudo parece ser tão fácil, mas não é. acho até muito difícil.
mas, travessados, continuamos travessando um ser-tão e – que bom! caminho nunca há de ser o mesmo, quando se muda o caminhar.
continuamos travessando um ser-tão, nossos ser-tões, tonhos, entortados de vento, embebidos de terra, e a saudade dá é sede. lendo e relendo no aquém do pensamento: o peso é certo, veja – o excesso é de saudade.
travessemos, travessemos esse nonada que agora nos habita, que agora despertou.

em palavra ou em silêncio, em canção ou em sussurro, em corpo ou em etéreo, em lua cheia ou meio dia – fogueira, folia, meditação, roda, fila, mutirão, trabalho, descanso, contemplação.
juntos, travessados estamos – travessemos.







(para o Caminho do Sertão - 2015 e sempre)

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Saudade de algum buritizal

"De tarde, como estava sendo, esfriava um pouco, por pejo de vento - o que vem da Serra do Espinhaço - um vento com todas almas. Arrepio que fuxicava as folhagens ali, e ia, lá adiante longe, na baixada do rio, balançar esfiapado o pendão branco das canabravas. Por lá, nas beiras, cantava era o joão-pobre, pardo, banhador. Me deu saudade de algum buritizal, na ida duma vereda em capim tem-te que verde, termo da chapada. Saudades, dessas que respondem ao vento; saudade dos Gerais. O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos buritis todos, quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega um silêncio põe no colo. Eu sou donde nasci. Sou de outros lugares. Mas, lá na Guararavacã, eu estava bem."

(João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas)


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Meu (e nosso) Caminho do Ser Tão - ou Anotações Para Todos Nós

Anotações Para Mim Mesmo

Deixa o começo
ser começo, apenas

Deixa ao começo
a dúvida viva

Pois, se o encher de
certezas,
te fecharás para o novo

Que só caminhando
se apercebe

Deixa o começo
ser começo, apenas

Para que possas
ocê mesmo
ser teus próprios meios

E esquecer-te
de quem eras
para saber quem afora
sois

*

Escolhi este poema para iniciar essa jornada. E agora que estou de volta a São Paulo, aos trabalhos, a exatamente as mesmas coisas que fazia antes de partir para o Sertão, não sei mais quem sou. 
Mas sei um pouco do que fui, lá fora, lá longe. Sei um pouco do que fomos: ternura.

Como disse meu amigo irmão, para mim também não é nem um pouco habitual abraçar tanto tantas pessoas num mesmo dia, tampouco pedir e dar massagens, afagos, sorrisos, ou o mais simples e sincero olhar no olho pra ver se está tudo bem. 
Não me era habitual passar ao menos 1/4 do dia cantando, ou bolando rimas e cantigas pra brincar com os amigos, pra alegrar o nosso dia. Não me era habitual, confesso, oferecer sempre aos outros absolutamente tudo o que eu tinha em mãos, a qualquer momento, sem pestanejar. Não me era habitual ir dormir cheio de dores e acordar com mais dores ainda, mas também cheio de alegria.

Posso dizer que, apesar de ainda não saber muito o que sou nessa pós jornada (não que eu soubesse muito antes de ir, mas enfim...), constato que, apesar da irônica tristeza de não mais levantar ao som de ACORDA MARIA BONITA, da saudade sem fim dos sorrisos de todos, e da falta que as pernas sentem de se acabar em caminhos dos Gerais... apesar disso tudo doer um bocado, constato que, estando aqui de volta, trago um Sertão comigo. 
Trago a gente, trago nossas vozes, nossos olhos, nossas bolhas em nossos pés, e nossos incansáveis sorrisos. Nosso festejar infinito. Nosso axé. 
E espero, mesmo mesmo, conseguir de alguma maneira estender isso aos que aqui se encontram comigo, que não fazem ideia do que foi tudo aquilo, mas que sentem, rapidamente sentem, que o João que voltou trouxe consigo algo muito bonito.
O que lembro, tenho, já dizia meu xará.

E eis que de repente estas Anotações Para Mim mesmo se tornam Anotações Para Todos Nós... vindas de coração, mais do que nunca, e comprovadas no encontro com cada um de vocês, com o Sertão, com o Caminho.

Gasshô.
É nóis.


Anotações para Todos Nós

Abrir os olhos
Abrir o coração em
caminhada

Que a poeira dos passos
de todos me lave
me leve
para um lugar além
melhor de mim

E, com tantos abraços,
afagos, cantos
e sorrisos

Que o brilho dos olhos
do mundo
possa ser como o dessa gente

Calos, bolhas
e paz, contudo.

*

“O capim molhado lavava meus pés”
 (J. G. R.)

*

Rio de gente
de gentes
gentilezas percorrendo
o chão
sorridentes

*

Saudações
de olhos
silêncio que fala
como o vento
em caminhada

*

Ache o seu ritmo
Ache o seu ritmo
Ache o seu coração
no caminho

*

O sol do 
Sertão
revela
a verdadeira cor
da nossa pele

*

“A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar”.
(J. G. R.)

*
(um poema que escrevi a pouco menos de um ano atrás, quando retornava do Japão e também me encontrava desencontrado, de volta ao que fui mas que já não me era mais)

Como se volta para as antigas roupas?
Que corpo é este que as veste agora?
Que pele as toca?
Que suor as umedece?

Lágrimas me acompanham, sempre.
Sou eu também quem chora?

Como voltar,
se é que há volta?

Como ser
inteiro
a pele que veste
as roupas de agora?

*
E uma pergunta:

Depois que a terra
é lavada
dos cabelos,
unhas e pele,
pra onde vai
o Sertão
em meu corpo?

*

Encerro esta postagem com um poema que eu também escolhi para iniciar a jornada, e li no sarau, em nossa primeira noite juntos.
É de meu poeta favorito, o Thiago de Mello.
Hoje este poema faz mais sentido do que nunca. Vejam só se não faz:


Para repartir com todos – Thiago de Mello (1981)

Com este canto te chamo.
Porque dependo de ti.
Quero encontrar um diamante,
sei que ele existe e onde está.
Não me acanho de pedir
Ajuda: sei que sozinho
Nunca vou poder achar.
Mas desde logo advirto;
Para repartir com todos.

Traz a ternura que escondes
Machucada no seu peito.
Eu levo um resto de infância
Que meu coração guardou.

Vamos precisar de fachos para as veredas da noite,
Que oculta e às vezes defende 
o diamante.
                  Vamos juntos, 
traz toda a luz que tiveres,
Não te esqueças do arco-íris 
que escondestes no porão.
Eu ponho a minha poronga, de uso na selva,
É uma luz que se aconchega na sombra.
Não vale desanimar
Nem preferir os atalhos
Sedutores que nos perdem,
Para chegar mais depressa.

Vamos achar o diamante
Para repartir com todos.
Mesmo com quem não quis
Vir ajudar, falto de sonho.
Com quem preferiu ficar
Sozinho bordando de ouro
O seu umbigo engelhado.
Mesmo com quem se fez cego
Ou se encolheu na vergonha
De aparecer procurando.
Com quem foi indiferente
E zombou das nossas mãos
Infatigadas na busca.
Mas também com quem tem medo
Do diamante e seu poder,
E até com quem desconfia
Que ele exista mesmo.
                                  E existe:
O diamante se constrói
Quando o procuramos juntos
No meio da nossa vida
E cresce, límpido cresce,
Na intenção de repartir
O que chamamos de amor.






*


Muito, muito obrigado a todos os envolvidos neste encontro maravilhoso que foi e sempre será o Caminho do Sertão!

http://ocaminhodosertao.wordpress.com/










quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Como se volta para as antigas roupas?
Que corpo é este que as veste agora?
Que pele as toca?
Que suor as umedece?

Lágrimas me acompanham, sempre.
Sou eu também quem chora?

Como voltar,
se é que há volta?

Como ser
inteiro
a pele que veste
as roupas de agora?



航海する海は涙で作る
koukaisuru umi wa namida de tsukuru

De lágrimas faço

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Oyasato


Oyasato

Uma canção em sopros que não cessa ao meu redor.
A confecção de baquetas, de peles, de corpos, de sons.
Rostos sorridentes, corpos cheios de vida, brilho nos olhos.
Cidade natal, cidade-mãe, vilarejo de outrora, de sempre, de antes.

A curiosidade, a inocência, a pureza.
O respeito, a vida, a reverência.
A reza.
A purificação.

O suor, o som, o chão.

Abraços de irmãos, amor de mestre.
O som, o som, o som.

A força sem dano, o esforço sem medo,
a explosão sem violência
quando é explosão de vida.

Uma família, estranha família, que de repente se cria
em meu peito.
Pequenos bobos e sábios
irmãs e irmãos.
Tanto a aprender.
Tanto a retribuir.

O som, o som, o som.



天理市、天理教校親里和太鼓部・親里四号館
平成25年5月3日

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Monte Yoshino, ventos, cerejeiras e a cabana de Saigyô


À beira da estrada
Na sombra de salgueiro
Onde flui límpido regato,
"Só por um minuto", disse eu,
E ainda não parti.

(Saigyô, tradução desconhecida por mim nesse momento)

Neste final de semana passado, mais especificamente no domingão, fiz um passeio que queria fazer há muito tempo, desde que cheguei aqui no Japão. Em companhia de alguns amigos franceses e um amigo brasileiro, subi o famoso Monte Yoshino (吉野山).
O Monte Yoshino se enconta na beirada de uma cadeia de montanhas que unem a província de Nara 奈良県, com a província de Wakayama 和歌山県. É uma região famosíssima, por conter inúmeros templos e caminhos antigos, sendo uma área considerada sagrada para a prática de peregrinação.
Nessas montanhas que se originaram, há muito tempo atrás, os Yamabushi 山伏, sacerdotes budistas da escola Shugendou 修験道, famosos por suas práticas ascetas e rituais de purificação - segundo um monge com quem conversei num dos templos.

O Mte. Yoshino, especificamente, é também muitíssimo famoso por ter em sua área centenas de pés de Sakuras 桜 (cerejeiras), que florescem em diferentes períodos, dada a diferença de altitude, prolongando assim o tempo de Sakuras florescidas.
Fui a essa montanha exatamente em busca das Sakuras, e não pude ficar mais contente com o que encontrei por lá. As árvores, em sua maioria, já estavam sem flores, e somente nos lugares mais remotos, montanha adentro, foi que as encontramos, já em seus últimos dias de exuberância. Foi magnífico.

Como já havia mencionado por aqui, a sensação que as Sakuras despertam é algo inigualável. Mas o que senti lá, no alto daquela montanha, foi ainda mais absurdo. O mesmo vento que me refrescava a cada passo na subida, derrubava centenas de pétalas, fazendo-as pequenas bailarinas, antes de chegarem ao chão, e ao final de sua vida.
Pequenas vilas se encaixavam nas curvas da montanha, e entre elas, enormes templos, carregados de silente e poderosa história. Um cheiro de incenso, o céu azul e a terra branda, ambos parecendo estar mais perto a um só tempo. Ancestralidade sem começo e nem fim, apenas sendo, vindo, e servindo.

Logo no primeiro templo que alcançamos, havia uma pequena barraca onde monges tão carecas quanto simpáticos ofereciam sake para os passantes, um sake que era produzido ali no próprio templo, e que servia a um único propósito: brindar às Sakuras, brindar à vida e à morte.
Nem preciso dizer da minha alegria com aquele brinde. Aquele começo de jornada ficou ainda mais onírico...

Caminhamos o dia inteiro, com um belo sorriso no rosto. Nos perdemos e nos achamos na floresta, almoçamos no meio do mato, o rolo de papel higiênico que levei na mochila salvou a vida de uma das amigas do grupo... enfim, foi um belo de um dia em minha vida.

Mas uma das coisas que mais me marcou, de longe, foi um encontro absurdamente inusitado. Após nos perdermos um pouquinho na floresta, voltamos para a bifurcação que nos levou à isso, e seguimos pelo caminho da esquerda. Após descer por uma trilha estreita, chegamos ao ligar mais cheio de Sakuras que encontramos até então: uma espécie de vale, pequeno, ao pé de dois morros.

Mas antes de contar o que exatamente encontramos por lá, gostaria de compartilhar uma outra estupenda surpresa que tivemos nesse caminho: uma garota japonesa estava fazendo essa mesma trilha, CALÇANDO SAPATOS DE SALTOS ALTOS. Não resisti, e tirei uma foto - achei que também seria útil para provar que eu não estava delirando, e que sim, algumas garotas japonesas podem ser tremendamente tontas. Aliás, tonto era também o namorado dela, que em muitos momentos a carregava nas costas morro acima e abaixo!  Juro que desejei ser esse cara por um momento, só para poder arremessá-la feito pétala de Sakura, e inventar assim mais uma bela forma de celebrar a brevidade da vida.

Bom, desabafo sádico a parte, sigo contando o que encontramos naquele vale das Sakuras...

Não haviam grandes coisas, além de dezenas de pés de cerejeiras, uma pequena bica d'água... e uma cabana. Um cabana isolada no meio da montanha, onde, há muito tempo atrás, pelo período de três anos, viveu sozinho um monge asceta, hermitão, poeta. Era chamado de Saigyô 西行.

Saigyô foi um cara incrível, e esse encontro com ele para mim foi mais uma experiência de tirar o fôlego, mais uma das algumas experiências que fizeram valer todo e qualquer sacrifício de estar aqui, para além do tanto de coisas práticas que estou aprendendo. Se estar aqui, sendo bolsista intercambista da Universidade de Tenri, engrandece meu currículo Lattes, esse pequeno e singelo encontro com Saigyô me enriqueceu a vida, o coração e a memória para sempre, e desde já sou grato por isso.
Já havia tido contato com a sua poesia antes, na faculdade, quando eu inda estava no Brasil. Li trechos de seu livro "Poemas da cabana montanhesca", e qual não foi o meu delírio ao encontrar, sem absolutamente nenhuma intenção ou precedente, a cabana onde ele viveu e escreveu este livro, a tal da Cabana Montanhesca!

Fico pensando nele ali, em como ele viveu, o que ele comia, como ele vivia... O que será que ele fazia todo dia? Três anos de solidão e completude. E o resultado disso não pode ser mais belo: poesia.

Ficam aí algumas fotos, minhas e de alguns amigos (Vinícius, Marion, Victorien), para ilustrar, ainda que muito pouco, como foi para mim esse dia - trecho de caminho, caminho de poesia.



O começo da subida, e a mistura das cores da montanha 


 E de repente tudo fica rosa


 Pequenas vilas guardando mil histórias


 Templão e Sakuras


 Templão e a tendinha do sake ali embaixo


O brinde


Mil Budinhas


 Um Yamabushi tocando seu berrante e posando pra foto


 Perdidos na floresta 1


 Perdidos na floresta 2


Perdidos na floresta, mas sem miséria!
Armoço no meio do mato

A trilha rosa

 A tonta


 A cabana: Saigyô-an
西行庵


A cabana e a estátua

O hómi

 "Indo embora de Omine-okugakemichi, sentido o Mte. Sanjogatake, descendo ao longo do vale por um tempo, você alcançará um pequeno vale. Em seu canto se encontra Saigyo-an,  uma pequena cabana onde Saigyo (1118-1190), um poeta e monge budista, viveu por três anos. Enquanto esteve nas profundezas da montanha, ele escreveu muitos poemas. Os arredores são uma área famosa de contenplação das cerejeiras, chamada Okusenbon. Como as cerejeiras, ambas as folhas verdes e frescas na primavera, e coloridas no outono, são muito bonitas. Ali por perto há uma fonte de águas limpas, chamada de Kokeshimizu."


O minino

O horizonte

 Os novos amigos


E a foto clássica queima-filme de minha pança grávida






É nóis, Saigyô-san.


PS. Aqui vai um blog que achei, de um cara que traduziu uns poemas do Saigyô.
Tá em inglês... mas quem conseguir entender, vai curtir com certeza.
Fico devendo traduções pro português de alguns poemas do Saigyô... promessa.
http://classicaljapanesetranslations.blogspot.jp/2012/06/saigyo-looking-to-west.html

sábado, 6 de abril de 2013

Memória eterna da fugacidade


E as sakuras já se vão de Tenri...
Eu, que não fiz as coisas que gostaria de ter feito enquanto elas inda estavam por aqui... adoeci, resguardei-me em casa, deixei tudo passar. E passou.
Não deixei de experimentar a sensação de brevidade que as sakuras nos despertam. Acordei num belo dia, a árvore que vejo de minha janela encheu de cor minha manhã. Acordei num belo outro dia, e já não estavam mais lá.
Foi assim mesmo, num sopro, que elas vieram e foram embora. Nasceram e morreram, e trouxeram sua serena, mas forte mensagem: estamos todos morrendo também.
Estas palavras podem não soar novas, mas sentir de fato a sensação de efemeridade que as sakuras despertam é algo sem tamanho. É como um sonho. Mal nos mexemos, mal piscamos e já nos resta apenas uma lembrança, a memória de sentir suas cores, seus sons, seus ares. Memória eterna da fugacidade.