quarta-feira, 22 de agosto de 2012

具える - Sonaeru - Preparar-se


Ainda em terra.
Ainda em continente.

Inicio o primeiro passo de partida: arrumar as malas com o que há de mais precioso em meu passado e em meu presente. 
Só levo o que sei que vou precisar - e como é difícil precisar o que é preciso. 


Já que roupas, tênis, agasalhos, meias e cuecas são coisas relativamente arranjáveis em qualquer lugar do mundo, decido não levar muito do que tenho. Escolho aquelas as quais tenho maior carinho.

Levo também presentes, para aqueles que conhecer por lá. Em japonês, a palavra お土産, Omiyage, designa exatamente isso: um presente, lembrança, souvenir. Um gesto de amizade, mostrar um pouco do que sou e de onde vim. Me divirto pensando no que seria mais brasileiro, diferente e divertido de levar: rapadura, goiabada cascão, paçoquinhas, bananinhas e, claro, cachaça...torço para que a Polícia Federal não pense que sou contrabandista.
Para minha própria sanidade, levo também uma groselha Campeão e alguns pacotes de Trakinas, pedaços de infância e alegria que, com certeza, me serão muito caros quando a saudade apertar.

Livros, sei que devo levar poucos. Como é difícil selecionar as palavras, ensinamentos que ainda preciso, e histórias que mais quero perto de mim! Sidarta, Cartas a um Jovem Poeta e Aikido e a Harmonia da Natureza foram os que desde o início eu tive a certeza de que levaria. Além destes, há uma nova aquisição, que veio no momento certo: De carona com Buda, que conta a história de um cara que percorre o Japão de ponta a ponta somente de carona. Levo um livro do Thiago de Mello, velho poeta, que um irmão me emprestou. E levo também um guia turístico do Japão, presente de uma querida amiga, que finalmente será utilizado de verdade.

No mais, levo pedaços. Formo um mosaico em meu peito com as palavras que me acompanham.
Faço deste blog também minha mala, e deixo aqui algumas das palavras não impressas que carrego comigo...  


Proverbios y cantares, XXIX - Antonio Machado

Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.

*

Para repartir com todos - Thiago de Mello

Com este canto te chamo.
Porque dependo de ti.
Quero encontrar um diamante,
sei que ele existe e onde está.

Não me acanho de pedir
Ajuda: sei que sozinho
Nunca vou poder achar.
Mas desde logo advirto;
Para repartir com todos.

Traz a ternura que escondes
Machucada no seu peito.
Eu levo um resto de infância
Que meu coração guardou.

Vamos precisar de fachos para as veredas da noite,
Que oculta e às vezes defende o diamante.
Vamos juntos, traz toda a luz que tiveres,
Não te esqueças do arco-íris que escondestes no porão.

Eu ponho a minha poronga, de uso na selva,
É uma luz que se aconchega na sombra.
Não vale desanimar
Nem preferir os atalhos
Sedutores que nos perdem,

Para chegar mais depressa
Vamos achar o diamante
Para repartir com todos.
Mesmo com quem não quis
Vir ajudar, falto de sonho.

Com quem preferiu ficar
Sozinho bordando de ouro
O seu umbigo engelhado.
Mesmo com quem se fez cego
Ou se encolheu na vergonha
De aparecer procurando.

Com quem foi indiferente
E zombou das nossas mãos
Infatigadas na busca.

Mas também com quem tem medo
Do diamante e seu poder,
E até com quem desconfia
Que ele exista mesmo.
E existe:

O diamante se constrói
Quando o procuramos juntos
No meio da nossa vida
E cresce, límpido cresce,
Na intenção de repartir
O que chamamos de amor.

*

Acho viver a vida
como quem andarilha.

Mesmo estando em
meu corpo em algum
lugar nalguma rotina.

Pois quem recria,
recria.
Refaz, revê,
reé.

Para ser nesta vida
um velho sem 
nenhum sinal de
cansaço.

E com muito mais 
do que cabelos 
brancos.

(Jony Pupo, 2007)

*

Muito tenho
pequeno sou
enorme mundo
                  além da cabeça

sempre amigo
                  simples futuro especial

         ideia inocente

mim voa
                  para longe

(Jony Pupo, 2005)

*

Preparar-se para uma longa jornada será sempre tarefa terrível, se quisermos arrastar o mundo em que vivemos para o mundo que iremos conhecer. 
Vivendo este momento de partida, tomo o banho de água fria dessa realidade: a bagagem deve ser leve, senão não há aventura, senão não há descoberta, senão não há crescimento.
E o medo, este sim, terrível, de largar tudo o que conheço, de me lançar para o nada? Para o outro lado do mundo? Para um bando de japoneses, falando japonês na minha orelha em tempo integral! 
O medo de me perder de mim, de não ser mais quem fui e quem sou, de não ter mais tudo o que tive e tenho na vida.
Para tal tipo de jornada, é preciso abandonar-se. Deixar tudo aqui, e me lançar para lá. Deixar sobrar somente a vida, que é quem vai me levando, derradeira e amavelmente. 
Aquilo que é em mim mais precioso, aquilo que sou eu... aqueles que amo, coisas que vivi e senti. Mestres que encontrei. Os tambores que ouvi e os que toquei, os poemas que li e os que escrevi, os filmes que vi, músicas que ouvi e cantei, livros que li e reli e reli... A moça que sorri em meu coração.
Deixo tudo aqui, porque deixo aqui a necessidade insana de querer reter e controlar a vida, em sua mais pura e crua potência. Deixo aqui essa ilusão de precisar levar com tijolos e telhas a casa onde cresci.
Deixo essas materialidades aqui, para me levar com mais leveza, porque sei que, se me levo leve, aos poucos sinto: "nada te abandona". E então simplesmente continuarei sabendo daquilo que me é precioso. Saberei daqueles que amo, das coisas vividas e sentidas, dos mestres, dos tambores, dos poemas, dos filmes, das músicas, dos livros... Saberei da moça sorridente de meu coração, como aquele que simplesmente sabe quando sente fome: sabe porque sente. 
"Nada te abandona", porque é o que é você, é o que sou eu, é o que somos nós. Por mais que mude, não mudo. Nada me abandona, porque eu, esquecendo-me, posso melhor e mais livremente me sentir, e então, pura e simplesmente ser tudo o que fui e sou - a vida em sua mais pura e crua potência.

"Fui à floresta porque queria viver plenamente. E sugar a essência da vida. Abandonar tudo que não fosse vida, e não, ao morrer, descobrir que não vivi."

- Thoureau